terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Conto: Escolhas

Pedro nasceu em 20 de julho de 1969. No dia em que o homem pisou na lua. Pelas contas de sua mãe e do médico, estava atrasado pelo menos uma semana. Parecia estranhamente quieto, como se não quisesse nascer. Começava ali sua “rejeição” ao mundo... Em bebê não chorava e ficava horas olhando para o nada como a observar alguma coisa. Demorou a falar e andar, sua mãe achava que tinha algum problema e procurava especialistas para “curar” o menino. Nunca foi encontrada qualquer anomalia. “É apenas um rapazinho quieto.” diziam os médicos. Mas dona Norma não se conformava. Ela já era mãe de três garotos e sabia que crianças são peraltas e aquele menino era estranho demais. Sem o que pudesse fazer, resolveu dar tempo ao tempo.

Pedro foi crescendo, mas sua postura não se alterava. Permanecia quase sempre em silêncio, com seu inseparável fone de ouvido e um livro nas mãos. Se largava a leitura era porque estava escrevendo. Nunca conseguiram descobrir sobre o que discorriam suas anotações. Esses diários só foram revelados depois de sua morte, surpreendendo a família e quem o conhecia. Seu jeito era sempre frio e distante. Ninguém nunca soube o que se passava dentro dele.

A única pessoa com quem conversava era o avô paterno. Ele havia dado a Pedro seu primeiro caderno, e lhe ensinado a ouvir o blues que embalava sua solidão auto infligida. Ele pertencia a uma típica família italiana comandada pela Nona e depois pela Mamma, com sua prole ao redor da mesa nos intermináveis almoços de domingo. Aquilo mais parecia um “show de bizarrice”. Seus irmãos eram bem mais velhos, “carecas e grosseiros”. Haviam também as cunhadas “gordas e submissas”, sem contar com as “crianças remelentas”. O barulho era insuportável, cada um querendo falar mais de si que o outro entre garfadas enormes de lasanha a bolgnesa. Observar a máfia reunida era uma lição de vida, decidira que nunca se casaria, evitando perpetuar o que achava grotesco e vulgar. Eles não eram pessoas más e nem mal educados, “apenas medíocres”. E Pedro nascera para coisas grandes e não para se tornar pai de “crianças patéticas e nem casado com mulheres sem cérebro”. Não, ele permaneceria imune aquela “praga” que assolara toda sua família.


Era um rapaz bonito, com sua pele morena e olhar penetrante. As meninas sempre o encaravam com desejo, mas não conseguiam despertar sua atenção e acabava por virar chacota entre os colegas de classe pelo seu jeito introvertido de ser. Achava ridículo o comportamento linear daquele “bando de idiotas”. Nadava todos os dias, o que lhe dava um corpo belo e mantinha sua mente concentrada. Nessas horas silentes dentro d’água fazia planos para o futuro brilhante que iria ter ou criava as historias que ocupariam as páginas de seu diário.

Viver em solidão, mesmo que por escolha pode ser dolorido, geralmente é. Principalmente quando se é jovem e a cabeça fervilha de incertezas, mas ele estava determinado a continuar sua caminhada e encontrou nas drogas uma maneira de aliviar as dores e substituir pessoas que poderiam mudar seu destino. Se tornou um poço de dogmas que seguia a risca. Claro que ele tinha amigos ocasionais e namoradas descartáveis. Eram os anos 80 com sua liberdade estampada em outdoors coloridos. Andava com um grupo de rebeldes sem causa como ele. Pensavam iguais e faziam sexo entre si como se ainda vivessem numa comunidade Hippie. Alguns eram bissexuais, o que os faziam parecer mais liberais ainda. Pedro nunca teve essas experiências, pelo menos nenhuma foi relatada em suas anotações. Se teve, não foi relevante em sua vida.

Fazia sexo com frequência. Era libertador, como foi descrito por ele mesmo. Era como encontrava o Deus que sua mãe tanto falava e que em sua visão, estava mais para um et. Ali sim ele estava “em sintonia com o cosmos, embalado por substancias que faziam de seu corpo um templo único”. Nessa época conheceu Sara, uma menina que parecia sua versão feminina e virou sua parceria constante de sexo e com quem discutia suas idéias mais profundas. Ela era linda com seus longos cabelos cacheados e aquele nariz alongado, típico das judias. A mãe tremia cada vez que Pedro citava o nome de Sara. Vivia repetindo que eles eram católicos e ele não poderia se casar com ela. Pedro ria por dentro dos medos da mãe. Não pensava em casar com Sara, falava nela constantemente só para ver o alvoroço na família. Era seu jeito de manter o silêncio durante o almoço.


Estava com 17 anos quando fez o vestibular para sociologia. Seu desejo era de “mudar o mundo”. Fazer com que as pessoas enxergassem que “tudo que elas viviam fazia parte de um plano macabro da sociedade consumista e retrógrada”. Comovente e patético ao mesmo tempo. Não precisou de um ano na faculdade para perceber que estava certo em sua visão, mas escolhera o jeito errado de atingir seus objetivos. Acabou entrando em depressão e ficou sem rumo durante muito tempo. Passava os dias deitado na cama pensando, bebendo ou se drogando. Sua mãe estava em desespero. Ele não queria saber de nada nem de ninguém e estava mais fechado do que nunca.

Depois de muita pressão resolveu trabalhar. “Se tivesse seu próprio dinheiro todos calariam a boca”. Ele teria que se curvar a sociedade que odiava, mas não havia outro jeito. Procurou um emprego onde pelo menos se sentisse à vontade, uma pequena livraria perto de sua casa. O dono era amigo de seu avô e Pedro ia lá desde criança para comprar livros. Assim ele estava em casa. Lia muito e conversava sobre livros com os clientes que ficavam abismados com seu conhecimento sobre todos os assuntos. Estava feliz a seu jeito. Em seu habitat natural e sem envolvimentos mais profundos.

Seus amigos estavam todos estudando e namorando, “acabaram sucumbindo à tentação da sociedade castradora”. Ele se sentia “traído e abandonado”. Até Sara parecia ter esquecido-se dele. Mas não importava. ele permaneceria como escolheu. Agora tinha outros planos, seria “escritor de sucesso”. Devorava livros e escrevia compulsivamente. De sua mente brotavam idéias em profusão e escrevia todas, mas nenhuma se ligava a ponto de produzir algo que ele achasse bom o suficiente para tentar publicar.

Os anos foram passando. Seus amigos agora estavam casando e era estranho ver a mudança em sua volta. Quando o avô morreu estava com 26 anos. Ele se fechou de vez na redoma que criou para se proteger daqueles “estranhos que se diziam seus parentes”. Agora a solidão tinha atingido seu ápice. Já não sentia prazer em nada, só o sexo, a música e os livros ainda faziam algum sentido ou pelo menos o tiravam daquela prostração.

Praguejava contra tudo e todos. Não sabia por que as pessoas não o entendiam. “Porque todos queriam fazer parte de um rebanho e não podiam pensar individualmente? E porque o condenavam por querer pensar diferente?”


Era um bom funcionário e acabou virando administrador da livraria, já que o dono já estava velho e não tinha filhos. Ele tomou conta de tudo. Virara um capitalista a contragosto, aumentando preços de livros para manter o negocio funcionado. Morava sozinho com a mãe já cansada e pensava em que ponto da sua vida “errou” para terminar assim.


Sua mãe morreu num domingo. Estranho e poético. Morrer com a família toda em volta como ela gostava. Agora ele estava só no mundo, já que seus irmãos não o viam como bom exemplo para seus filhos, e finalmente acabaram-se os almoços que ele tanto odiava. Nunca achou que diria isso, mas sentia falta do barulho. A casa em silêncio o fez ver que estar sozinho por opção é uma coisa, mas estar assim porque ninguém o quer por perto é insuportável. Mas ele nunca deu o braço a torcer e não daria agora. Tinha 32 anos e tempo ainda de criar seu próprio mundo como achava que deveria ser. “Não desistiria de seus sonhos por nada”.

Um dia chegou em casa um envelope. Era o convite para o casamento de Sara. Uma tristeza profunda invadiu seu coração. Pensar que nunca mais tocaria em sua pele ou sentiria o cheiro de seu cabelo mexeu demais com ele. Não entendia o porquê desse sentimento, afinal fora dele a escolha de ficar só. Ela sempre o amou e até tentou levar a sério, mas ele era duro na queda e não deixaria nem mesmo uma mulher como ela tirá-lo do seu destino solitário.

No dia do casamento reviu todos os amigos. A gangue reunida foi um evento inesquecível. Relembraram as farras, porres e as idéias loucas que surgiam entre um gole e uma tragada. Riu como a muito não conseguia e pela primeira vez percebeu a importância de ter amigos e invejou a felicidade burguesa deles. Quando voltou para casa decidiu que era hora de mudar algumas coisas em sua vida. Fazer adaptações, como ele descreveu.

Não sabia por onde começar. O que teria que ser mudado primeiro? Decidiu que seria o guarda roupa e visual. Deixaria aquele jeito desleixado de lado e seria um homem atraente. Depois reformou a casa. Abandonou o jeito sombrio e agora abria as janelas para o sol entrar. Logo ele, “um amante da lua”. Mas não demorou para perceber que não adiantava mudar por fora se continuava o mesmo por dentro. Conseguia conquistar as moças, mas nunca mantê-las, afinal se defendia tanto que elas fugiam depois de um tempo. Tentou fazer novos amigos, mas nenhum tinha em sua visão capacidade de compreendê-lo. Ainda continuava o mesmo arrogante e elitista de sempre, apesar de achar que a culpa era do mundo.

Um dia Sara bateu a sua porta. Estava triste com o fim de seu casamento e foi procurar consolo nos braços do amigo. Ele a recebeu com uma alegria egoísta. Via nela a sua grande chance. Ela era a pessoa que mais o entendia no mundo e eram tão parecidos que tinha a impressão que era apaixonado pelo espelho e talvez fosse mesmo. Ao invés de demonstrar seu amor ou alterar sua rotina, tentou encaixar Sara nos seus parâmetros. Pôs tudo a perder novamente por sua falta de percepção do outro. Sempre vivera apenas para si e ter que dividir-se em agrados que julgava banais fez com que ela fosse embora mais uma vez e ele finalmente percebesse que não havia maneira de viver ao lado de alguém.

Resignado caiu na farra irresponsável de antes. Largou tudo e disse a si mesmo que agora seria o que sempre sonhara. Agradeceu não ter cedido a Sara, assim era livre de verdade. Tinha dinheiro guardado e morava sozinho. Podia passar algum tempo dedicado a viver intensamente e escrever sobre isso. Quando terminasse publicaria um livro sobre suas experiências. Esse sim seria um sucesso e todos finalmente teriam que engolir que ele era “alguém especial”.

Assim continuou sua sina, numa competição particular com a vida. Quem iria desistir primeiro?

Já estava com 39 anos, quase acabado financeiramente e ainda sozinho. Sucesso? Só entre as prostitutas que adoravam seu jeito inteligente e generoso. Estava na hora de entregar os pontos, mas ele queria fazer em grande estilo e resolveu dar uma festa de ano novo. Esse seria o marco de sua mudança definitiva. Sim. Ele desistiu de ser o guerreiro solitário das causas perdidas. Tinha que admitir finalmente que precisava ser amado como qualquer ser humano normal.

Preparou uma grande festa. Convidou sua família e todos os amigos que fizeram parte de sua jornada de vida. Comprou presentes especiais e arrumou a mesa como sua mãe gostava. Queria mostrar que tinha mudado e que essas pessoas eram importantes para ele.

Sentou e esperou. As horas passaram e a campainha não tocava. Impaciente bebia e tentava se convencer que havia dito a hora errada do jantar. Mais uma, duas horas, e nada. Meia noite... Pedro só e embriagado xingava o mundo enquanto sentia, pela primeira vez, o peso de suas atitudes. Os fogos começaram a estourar no céu e ele chorando como um bebê, deitado no chão da sala vazia.

Eu o encontrei no dia seguinte. Mesmo a revelia do meu pai, eu tinha admiração por Pedro. E foi muito dura a cena que presenciei. Aquele homem sempre altivo e de nariz em pé nu com um tiro na testa. Ao seu lado o revólver do avô. Como companhia apenas seus cadernos e um blues triste tocando em looping. E me perguntei: Será que realmente fazemos nosso destino?

2 comentários:

  1. Menino, que coisa mais bela!! Adorei o conto. Muito interessante o jeito como vc desenvolve a história de forma concisa. Parabéns. Aguardo os próximos :-) bjs

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  2. Nossa, estou encantada!
    A princípio o personagem me lembrou muito Schopenhauer, porém em uma forma bem contemporânea, submerso por pensamentos comunistas etc...
    Logo após ficou bem claro a necessidade do ser humano ser social, porém, uma socialização individualizada!
    Seu conto complementou, de certa forma, minha análise sobre a 'solidão assistida'... mostrando numa história, completamente passível de ser real, os extremos do que somos capazes de fazer com nossa própria vida a favor de nossos ideais, que, às vezes, por nossa teimosia ou completa cegueira, nos destroem.
    Parabéns!
    Acompanharei seu blog a partir de agora! :)

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